Por Cesar Timo-Iaria

A história da fisiologia do sistema nervoso em qualquer país confunde-se com a história da própria Fisiologia, a disciplina da Biologia que estuda o funcionamento dos seres vivos, segundo a acertada mas pouco conhecida e ainda menos acatada definição de Jean Fernel, enunciada no século XVI. Essa vinculação resulta do fascínio que o sistema nervoso sempre exerceu sobre cientistas e leigos, a ponto de que todos os fisiologistas do passado se hajam interessado pela neurofisiologia, ao menos em alguma etapa de sua vida profissional. Já no século V a. C. Alkmaeon, discípulo de Pythagoras na região da Magna Grécia que é hoje a Calábria italiana, descobriu o nervo óptico e chegou ao avançado conceito de que o sistema nervoso, particularmente o encéfalo, é a sede das sensações e da atividade mental. Quase à mesma época, outro grande grego, Hipócrates, fundador da medicina objetiva, exarava conceito semelhante ao afirmar que “é no encéfalo (enkephalon), e somente no encéfalo, que nascem nossos prazeres, alegrias, os risos e as graças, assim como as tristezas, dores, angústias e o pranto. É por ele que pensamos, vemos, ouvimos e distinguimos o feio do belo, o mau do bom, o agradável do desagradável. É o mesmo encéfalo que nos torna loucos ou delirantes, que nos inspira pavor e o medo, seja à noite ou de dia, que nos traz o sono e o engano indesejável, a ansiedade inútil, a distração e os atos contrários aos hábitos, defeitos que dele vêm quando se torna enfermo”. É admirável a conceituação de Hipócrates, que 25 séculos atrás atribuía ao sistema nervoso a gênese da mente em todas as suas formas normais mas também em suas manifestações psiquiátricas. Enquanto Hipócrates, que vivia na modesta porção insular da Magna Grécia que era a ilha de Cos, escapava aos críticos da objetividade, Alkmaeon, que habitava um dos principais núcleos da cultura grega continental, era acerbamente criticado, sobretudo pelo influente Parmênides, que não acreditava que os sentidos, a observação e a experimentação pudessem revelar os segredos da mente. Esse retrogrado conceito é ainda muito poderoso em nossos tempos. Alkmaeon chegou a ser vítima de perseguição política por suas idéias avançadas.

Outro motivo pelo qual a história da neurofisiologia se confunde com a história da Fisiologia é que toda e qualquer função do organismo animal, dos invertebrados à espécie vertebrada mais evoluída (por enquanto), o Homo sapiens, é gerada, regulada ou pelo menos modulada pelo sistema nervoso. Os estudiosos dos sistemas cardiovascular, respiratório, digestivo, imunológico, endócrino e renal sempre tiveram de investigar sua regulação nervosa para compreendê-los, tornando difícil delimitar corretamente a extensão das pesquisas primariamente relativas ao sistema nervoso. De fato, essa delimitação é totalmente arbitrária. Em endocrinologia, por exemplo, quem não pesquisa em bioquímica dos processos endócrinos pesquisa em sua regulação pelo sistema nervoso. No domínio da fisiologia cardiovascular as pesquisas mais revolucionárias também se relacionam com a bioquímica dos fatores humorais ou com os mecanismos neurais de regulação. A imunologia básica igualmente ocupa-se em nossos tempos sobretudo de seus mecanismos moleculares ou de sua regulação nervosa.

Quanto mais se estuda a fisiologia nervosa cada vez menos se pode dissociar o estudo anatômico (sobretudo hodológico) da abordagem funcional do sistema nervoso. Para acolher essa interdisciplinaridade, criou-se há alguns anos o dispensável nome de Neurociência, com o fito de englobar o estudo da estrutura e de todas as funções, normais ou patológicas, do sistema nervoso (imagine-se o que pensariam de alguém que denominasse o estudo do sistema cardiovascular de cardiovasculociência e o estudo do sistema digestivo de esôfagogastronterociência ou, pior, de digestociência…). Entretanto, em franca colisão com fortes sentimentos de delimitação de território e até mesmo de desconhecimento real do que sejam funções neurais, esse conceito de Neurociência deteriorou e continuaram praticamente as mesmas anteriores divisões irracionais, agrupadas agora em dois campos, Neurociência e Comportamento, artefato espúrio, como se os comportamentos fossem independentes do sistema nervoso, que revive o velho conceito da dualidade alma-matéria.

No Brasil, o estudo experimental e sistemático da Fisiologia começou, sem dúvida, com os irmãos Álvaro e Miguel Ozório de Almeida, no Rio de Janeiro, os quais também iniciaram (principalmente Miguel Ozorio) as pesquisas em neurofisiologia. Membros de uma família de alto gabarito cultural, os dois irmãos montaram um autêntico Instituto de Fisiologia em uma casa, na qual inventaram a Fisiologia brasileira. Muito interessado no estudo do metabolismo, Álvaro Ozório criou uma escola nesse campo, que culminou com seu discípulo Paulo Enéas Galvão, que foi para o Instituto Biológico de São Paulo e tornou-se o segundo professor de Fisiologia da recém-criada Escola Paulista de Medicina, substituindo outro de seus discípulos cariocas, Thales Martins (que em parceria com Ribeiro do Valle ajudou a fundar a neuroendocrinologia). Nas décadas de 1930 e 1940 houve maciça emigração de cientistas cariocas para São Paulo, levados pela criação do Instituto Biológico, onde Maurício Rocha e Silva, da mesma leva de expatriados, “inventou” os peptídeos, embora alguns já fossem conhecidos antes dele. Galvão tornou-se fisiologista internacionalmente conhecido por seus clássicos estudos do metabolismo em climas quentes, que confirmaram e estenderam os conceitos enunciados em meados do século XIX pelo médico alemão Robert Meyer, conceitos esses fundamentais para a descoberta do metabolismo e para a criação da Termodinâmica.

Miguel Ozório de Almeida, entretanto, pesquisou a vida toda em fisiologia e fisiopatologia do sistema nervoso. No ano de 1944 ele, que, diga-se de passagem, era exímio pianista e literato, publicou um erudito livro sobre os processos de inibição e facilitação no sistema nervoso central e periférico (L’Inhibition et la facilitation dans le système nerveux central et périphérique). Miguel Ozório sentia particular atração pelos mecanismos das epilepsias, tendo realizado extensos estudos em epilepsia experimental, nos quais envolveu Haiti Moussatché, que pesquisou nesse campo durante quase toda a sua vida. Vários fisiologistas dedicados ao estudo do sistema nervoso se diferenciaram nos anos 30 e 40, direta ou indiretamente sob influência de Miguel Ozório, destacando-se, além de Moussatché, Mario Ulysses Vianna Dias, Tito Cavalcanti e Carlos Chagas Filho.

Aristides Azevedo Pacheco Leão tornou-se o mais célebre neurofisiologista brasileiro por ter descoberto a depressão alastrante em 1944, quando se doutorou na Harvard Medical School. Esse ainda enigmático fenômeno vem sendo desde então estudado ininterruptamente por pesquisadores brasileiros, europeus, americanos e japoneses, pela possibilidade de estar implicado na interrupção de crises epilépticas ou mesmo em funções normais. Leão, de tradicional família do Rio de Janeiro, veio em 1932 estudar Medicina na Faculdade de Medicina de São Paulo (ainda não parte da Universidade de São Paulo, que seria criada apenas em 1934). Tendo adoecido, talvez devido ao inóspito clima da cidade, que naqueles tempos era muito fria e incomodamente úmida no inverno e caracterizava-se pela chuva e por onipresente garoa durante mais de metade do ano, Leão retornou ao Rio de Janeiro e anos mais tarde foi doutorar-se nos Estados Unidos. Após sua volta ao Brasil, Leão juntou-se a Carlos Chagas no recém-criado Instituto de Biofísica e agregou numerosos discípulos, dentre os quais se salientou Hiss Martins Ferreira, que continua pesquisando em depressão alastrante. Martins Ferreira descobriu a depressão alastrante na retina de aves, criando um modelo hoje usado em todo o mundo.

Carlos Chagas Filho, cujo pai, Carlos Chagas, realizou extraordinária obra em Medicina ao descobrir a moléstia que leva seu nome, fundou o Instituto de Biofísica em 1941 como parte da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e foi pioneiro no estudo dos mecanismos de transmissão química, usando como modelo a eletroplaca de peixes elétricos. Ao criar o Instituto de Biofísica, Chagas Filho cercou-se de alguns cientistas ilustres, entre os quais os já citados Aristides Azevedo Pacheco Leão e Hiss Martins Ferreira de início. Durante uma temporada que passou no Instituto de Biofísica logo após a segunda guerra mundial Rita Levi-Montalcini fez experimentos cruciais para a descoberta do primeiro fator de crescimento neural.

No final da década de 1950 dois eminentes fisiologistas sairam das fileiras de alunos da Faculdade Nacional de Medicina e juntaram-se a Carlos Chagas Filho: Eduardo Oswaldo-Cruz Filho e Carlos Eduardo Guinle da Rocha-Miranda. Os descendentes acadêmicos de Oswaldo-Cruz e de Rocha-Miranda constituem hoje multidão. Além de hábeis eletrofisiologistas, esses dois importantes cientistas iniciaram no Brasil a neuroanatomia hodológica, dedicando-se sobretudo ao estudo dos sistemas visual e olfativo do gambá e de macacos. São muitos os descendentes científicos de Oswaldo-Cruz e Rocha-Miranda no próprio Instituto de Biofísica UFRJ e outros espalhados pelo Brasil, inclusive um forte grupo especializado em fisiologia visual em Belém, Pará, e um grupo no Departamento de Fisiologia e Biofísica da USP em São Paulo que realiza pesquisas em neuroanatomia hodológica, iniciado com Sarah Shammah Lagnado, treinada que foi no Instituto de Biofísica. Rocha-Miranda foi o primeiro biólogo brasileiro a utilizar computação eletrônica em suas pesquisas no Brasil. Seu Digital tornou-se disputadíssimo quando ainda era o único computador do país em uma instituição dedicada ao estudo da Biologia.

Outro grande pioneiro da neurofisiologia no Brasil foi, sem dúvida, Miguel Rolando Covian, que em 1955 veio da Argentina para dirigir o então Departamento de Fisiologia e Biofísica da Faculdade de Medicina que a Universidade de São Paulo instalara em Ribeirão Preto em 1952 e lá criou uma escola com ramificações por todo o Brasil. Covian, discípulo do grande Houssay, tinha forte cultura em Fisiologia, navegando bem em fisiologia endócrina, cardiovascular e nervosa. Oriundo de importante laboratório de fisiologia endócrina, Covian foi, independentemente de Thales Martins e Ribeiro do Valle, um dos criadores da neuroendocrinologia. Seu principal herdeiro é José Antunes-Rodrigues, atual presidente da Sociedade Brasileira de Fisiologia e um dos grandes nomes da neuroendocrinologia moderna, que também muito ajudou a criar. Os discípulos de Antunes-Rodrigues se espalham por várias universidades brasileiras, sendo de se notar o da Faculdade de Odontologia da UNESP em Araraquara SP e o da Universidade Federal da Bahia.

Eu também sou descendente de Covian, que foi meu mestre em eletrofisiologia. Mais de uma dezena de minha centena de discípulos são ou foram professores titulares, dos quais 2 nos Estados Unidos, 1 na Alemanha e 1 na Itália. Devo destacar dentre esses titulares Luiz Roberto Giorgetti Britto, que também fez escola, com discípulos na Universidade de São Paulo e em outros Estados do Brasil, e Armando Freitas da Rocha, que pontificou na UNICAMP, onde se tornou um grande experto em matemática aplicada à Biologia.

Nos Estados do Norte e Nordeste a Neurofisiologia conta com bons laboratórios em Belém do Pará e em Salvador, o primeiro com raízes no Instituto de Biofísica, o segundo em Ribeirão Preto, de onde também se originou o grupo de Luiz Carlos Schenberg, que hoje pontifica em Vitória, Espírito Santo, descendente de Frederico Guilherme Graeff, importante líder de pesquisas sobre comportamentos defensivos.

Em Minas Gerais a Neurofisiologia teve desenvolvimento modesto mas há que destacar ex-alunas de Covian que pesquisam em neuroendocrinologia e Fernando Pimentel, que estuda comportamentos. No Paraná há um grupo em Curitiba, criado por Chang Yong-Chang, outro em Londrina e outro, ainda incipiente, em Maringá. Em Santa Catarina os grupos ativos descendem de José Marino Neto, por sua vez descendente de Juarez Aranha Ricardo, da USP.

No Rio Grande do Sul destaca-se o Centro de Memória, no qual o grupo de pesquisadores criado por Ivan Izquierdo é, sem dúvida, um dos mais importantes do mundo na atualidade, e o grupo de neuroanatomia do Instituto de Ciências Básicas da Saúde, ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Os campos da Neurobiologia em que os brasileiros trabalham são múltiplos. Destaco dentre eles:

a) os estudos de fisiologia e hodologia do sistema visual, realizados no Instituto de Biofísica do Rio de Janeiro, em Belém do Pará e no Instituto de Ciências Biomédicas USP; deve-se destacar, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, a pesquisa feita por Dora Fix Ventura e seus colegas, que há muitos anos vêm estudando várias características do sistema visual, sobretudo os sensores visuais, campo em que seu grupo se destaca internacionalmente;

b) memória e aprendizado, realizados no Laboratório de estudos de memória da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na Universidade Federal de Minas Gerais, no Departamento de Fisiologia da Universidade Federal de São Paulo, no Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências USP, no Departamento de Fisiologia da UNICAMP e no Instituto de Psicologia USP;

c) comportamentos defensivos na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto e no Departamento de Fisiologia da Universidade Federal do Espírito Santo;

d) fisiologia do sono no Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo, em nosso Laboratório na Faculdade de Medicina e no Instituto do Coração, da USP;

e) fisiologia da atividade mental no Instituto de Biofísica UFRJ, no Centro de Neurociências e Comportamento e em nosso Laboratório na Faculdade de Medicina, ambos da USP e no Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina USP.

f) regulação do sistema cardiovascular: Instituto do Coração USP, onde avultam as pesquisas sobre um modelo de hipertensão neurogênica criado por Eduardo Moacyr Krieger (o mais antigo a pesquisar sistematicamente em fisiologia cardiovascular no país) e sobre os mecanismos do choque hemorrágico e sua recuperação por administração de solução hipertônica; Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto USP; Departamento de Fisiologia da Universidade Federal de São Paulo; Departamento de Fisiologia da UFRGS; Departamento de Fisiologia da Universidade Federal de Minas Gerais; Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas USP; Departamento de Fisiologia e Biofísica do Centro de Ciências Fisiológicas Universidade Federal do Espírito Santo; Instituto de Biofísica UFRJ;

g) regulação do sistema endócrino, comportamento alimentar e de ingestão de água: Departamentos de Fisiologia e de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto USP, em linha de pesquisa criada por Miguel Rolando Covian e elevada ao cume no panorama nacional por José Antunes-Rodrigues e seus discípulos; Departamento de Bioquímica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto USP, em linha de pesquisa criada por Renato Helios Migliorini e continuado por seus vários discípulos locais e em Maringá; Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas USP, criado por Naomi Shinomiya Hell e hoje continuado por seus vários discípulos; Departamento de Fisiologia UFRGS; Departamento de Ciências Fisiológicas da Universidade Estadual de Londrina Paraná; Departamento de Fisiologia da Universidade Estadual de Maringá, Paraná; Departamento de Fisiologia da Universidade Federal de Minas Gerais; Departamento de Bio-regulação da Universidade Federal da Bahia; Departamento de Fisiologia da Universidade Federal de São Paulo; Departamento de Fisiologia da Faculdade de Odontologia UNESP Araraquara; Laboratório de Neurocirurgia Funcional (nosso laboratório) e Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina USP; Instituto de Biofísica UFRJ.

h) a neurofarmacologia é um campo muito desenvolvido nas Universidades Federais da Bahia, do Espírito Santo, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro, de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul e de São Paulo, assim como na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, nas Universidades Estaduais de Londrina e de Maringá (PR), no Instituto de Biociências USP, no Instituto de Ciências Biomédicas USP, no Instituto de Biologia da UNICAMP e no Instituto de Biociências da UNESP (SP).

Uma análise da evolução da fisiologia no Brasil a que procedemos para o CNPq há alguns anos revelou que os campos da Fisiologia que mais cresceram no país, em termos de produção científica e de pós-graduados, foram a Neurofisiologia e a Endocrinologia, seguidas da Fisiologia Cardiovascular. Tal crescimento ocorre de forma exponencial, como bem se nota nos congressos anuais da FESBE. A influência da FAPESP nesse rápido crescimento tem sido de inestimável valor no Estado de São Paulo. Não há dúvida de que se as várias outras fundações de amparo à pesquisa que existem no Brasil financiarem a pesquisa como dispõem as leis que as criaram e se criarem empregos para absorver os milhares de egressos da pós-graduação, o progresso será ainda mais rápido, tornando ainda mais patente a contribuição dos cientistas e pesquisadores brasileiros para o conhecimento em um campo em que desde as primeiras décadas se colocam entre os melhores.




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